Caszely, o craque que encarou
Pinochet
11 de setembro registrou um retrocesso
imenso para a humanidade; milhares de pessoas foram executadas, muitas
torturadas antes, algumas sem o ato humano de exéquias e sepultamento.
Esta data remonta ao fatídico ano de
1973, terrível para os chilenos, quando o presidente socialista eleito pelo
voto popular, o médico Salvador Allende, tornou-se vítima de um golpe à
democracia perpetrado pelo traidor general Augusto Pinochet, um de seus
ministros, uma marionete inserida no movimento de instabilidade que os EUA
realizavam nas Américas. Allende não cedeu e renunciou à vida, resistindo à
insidiosa subserviência dos militares ao “Tio Sam”.
Neste período, o clube mais popular do
país, o Colo-Colo, nome em homenagem ao líder indígena do povo Mapuche, que
lutou contra os colonizadores espanhóis, vivia grande fase, decidindo,
inclusive, a Libertadores da América, façanha inédita para o futebol andino,
onde mantinha um público médio de 40 mil pessoas em seus jogos. Forneceu a base
para a Seleção na Copa do Mundo disputada na Alemanha em 1974.
Deste clube histórico, a grande estrela
chamava-se Carlos Caszely, centroavante baixinho, canhoto e vocacionado na arte
de marcar gols. Pela sua habilidade, ganhou uma expressão: - O Rei do Metro
Quadrado - pela incrível habilidade nos dribles e movimentos em exíguos espaços
nos gramados.
Caszely participava ativamente na
política de seu país, fruto de sua conscientização do conceito de cidadania,
que o levou a ter identificação com a Unidad Popular, coalização que conduziu
Allende à eleição, à presidência do Chile.
Caszely apoiou abertamente os candidatos
socialistas, pois gozava da condição de maior ídolo do principal esporte
chileno e capitão do Selecionado, deferência que atingiu cedo, aos 22 anos.
A disputa para o Chile ir para a Copa do
Mundo de 74, exigiu a confirmação da vaga em dois confrontos com a URSS (União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas).
A partida de ida ocorreu em Moscou, um
empate por 0 a 0. Assim, as chances aumentaram para os sul-americanos. Uma
vitória simples carimbaria o passaporte para a Alemanha Ocidental, sede do
torneio.
Designado para a partida de volta, o
estádio Nacional, após o golpe militar liderado por Pinochet, transformou-se
num verdadeiro campo de concentração, um símbolo triste das atrocidades
cometidas pelo ditador e seus asseclas. Os soviéticos se negaram a vir, mesmo
que isso, significasse não disputar a Copa do Mundo.
O governo chileno, como última tentativa,
pegou seus presos, retirou-os do estádio, levou-os para a cidade abandonada de
Salitrera, de Chacabuco, porém, evidentemente, a representação europeia não
veio, aí, aconteceu um dos eventos mais patéticos da história das Copas. O
Chile entrou em campo no estádio Nacional, sem adversário, o árbitro apitou e
os jogadores saíram tocando a bola até o arco vazio e Francisco “Chamaco”
Valdés marcou o gol, garantindo a vaga. “O gol mais triste do Chile”.
O Palácio La Moneda, interditado, pois
havia sido bombardeado, então, Pinochet, na sede provisória do governo,
recepcionou a delegação para os cumprimentos no embarque para a Alemanha.
Quando o ditador estendeu a mão para o
capitão Carlos Caszely, este lhe negou o cumprimento, que foi duramente
criticado pelo porta-voz do governo: - “Veja como é desagradável esse jogador
comunista, que, inclusive, foi capaz de negar a saudação ao Presidente”.
Na Alemanha Ocidental, o Chile não passou
da primeira fase e Caszely acabou expulso na partida de estreia, dando munição
aos seus críticos.
Enquanto se desenvolvia a competição na
Europa, no Chile, Dona Olga Garrido, mãe de Caszely, acabou detida e torturada.
O craque só tomou conhecimento disso ao voltar do Mundial. Pinochet tinha se
vingado da forma mais cruel possível do gesto do atleta.
Na nova década, com a pressão aumentando
pela sociedade chilena e organismos internacionais, mais o distanciamento dos
Estados Unidos, a ditadura deu sinais de cansaço, de falta de fôlego, assim,
veio o seu esmorecimento.
Em 1988, na tentativa de passar um tom de
legitimidade a seu governo, Pinochet convocou um plebiscito para 5 de outubro.
Caberia ao povo decidir pela continuidade ou não do regime liderado por ele.
No mês de setembro daquele ano, a
televisão exibiu propagandas entre Sim e Não pela permanência ou fim da
ditadura. Caszely, convidado a participar da campanha, sugeriu que outra pessoa
de sua família fosse se manifestar, pois ela experimentara, na prática, os
horrores físico e psicológico das ações dos golpistas.
Em 20 de setembro, Olga Garrido contou em
detalhes os momentos macabros que passou diante dos militares. Na sequência,
junto dela, Caszely apareceu diante das câmeras, conclamou a votarem pelo Não.
“Porque sua alegria é minha alegria.” Porque seus sentimentos são meus
sentimentos. Porque esta linda senhora é minha mãe”.
A história jamais exposta em público
gerou uma enorme comoção nacional que desequilibrou o resultado do plebiscito,
com o “No” ganhando o percentual de 60%, fazendo retornar a democracia ao povo
chileno no ano seguinte.
Esta é a história de um craque que
brilhou dentro e fora das quatro linhas, futebol e cidadania, sempre com muita
coragem e de forma destemida.
Caszely tem um lugar definitivo na luta
pela busca de uma sociedade mais justa e humana em seu país.
Original em 01/12/24.
Literatura
de Apoio (Fontes):
https://ludopedio.org.br
https://brasil.elpais.com